ESCRITA DE QUARENTENA

por Renata Maria Franco Ribeiro, mestranda de Antropologia no ISCSP-UL


Sou da cidade de Guaramiranga/Ceará, um cantinho verdejante, com clima ameno, cheia de charme, conhecida como a cidade da arte, da música, do Festival Nordestino de Teatro, no Ceará da Região Nordeste do Brasil. Chego ao primeiro mundo, pouco mais de cinco meses na perspectiva de construir pontes e novas experiências de aprendizagens, um pouco de lá com o de cá.

Nascida em outros mundos, trago na mala uma porção de coragem, o projeto foi construído por mim, entretanto realizado por muitas mãos de afetos e acolhimentos, nessa travessia de emigrar com um filho-criança.

Foi aqui em Lisboa, linda e difícil de existir enquanto mulher, mãe, acadêmica, que eu me deparo emaranhada na canção dos anos 70, “O dia em que a Terra parou”, de Raul Seixas, brasileiro. Sim, Lisboa parou. Quem parou?

Em tempos de pandemia coronavírus, há mensagens por todo lado, fica em casa, vai dar tudo certo, minha luta não faz quarentena do lado de cá, do lado de lá do Atlântico, as lutas, resistências e esperanças se alinham.

Agora somos um só? Nossas lutas são distintas? Do lado de lá, nos outros mundos? “Alegrias, alegrias, ninguém solta a panela de ninguém” diz o maravilhoso ator brasileiro, Bemvindo Sequeira.

O chefe de estado brasileiro, diz” isso é só uma gripezinha, os brasileiros não pegam nada, vivem no esgoto”, lembro-me de Chicó: “não sei, só sei que é assim“, seu pensamento caiu na boca dos brasileiros, ele, o contador de causos, audacioso, cheio de esperteza, o personagem da peça “O Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna, nordestino inesquecível, poeta, professor, dizia “não troco o meu oxente pelo Ok de ninguém”.

As linhas abissais do cientista social Boaventura de Sousa Santos, refletem os dois mundos, e será o Norte global e suas epistemologias do saber, dominação, superioridade, tão distintos dos outros mundos e sobre os outros mundos, a não ter a capacidade de proteção dos que acreditam e habitam nesse mundo?

O primeiro mundo, que se orgulha da sua democracia, onde somos todos iguais, temos os mesmos direitos e deveres, temos a mesma garantia de proteção e autonomia financeira para #ficaemcasa?

Num cenário acinzentado, os bancos dos jardins com fitas de isolamento, as paragens dos autocarros esvaziadas, um silêncio melancólico, mulheres à espera dos autocarros nas manhãs frias de quarentena por Lisboa. E quem são essas mulheres? O que elas, eu, nós fazemos?

Por algum instante, duas estranhas, começam a conversar, compartilhamos as incertezas, fizemos uma leitura das ruas vazias, falamos da pandemia, do medo de tudo isso não passar logo, da esperança dos dias melhores, do que nos motiva enquanto mulheres.

Ela falou: ”sou uma mulher de 60 e tal anos, vivi muita coisa na vida”. Ela chegou aqui há mais de 30 anos, tem filhos e netos nascidos por aqui, eu recém-chegada, e sem ter vivido muita coisa nessa vida, nada comparada aquela fortaleza diante de mim.

A busca da sobrevivência e as brechas do subemprego, nesse primeiro mundo, nos une ou nos coloca face a determinadas situações repetitivas, como a da exploração com as mulheres negras, mulheres imigrantes, grupos minoritários?

Alvalade (Lisboa), 12 de abril 2020.



Citar este post
CRIA (2020, 15 Abril). ESCRITA DE QUARENTENA. CONFINARIA. Recuperado em 28 de Março de 2024, de https://doi.org/10.58079/n27e

18 comentários em “ESCRITA DE QUARENTENA”

  1. Belíssimas palavras, descrevendo uma situação de abalou o mundo.
    Parabéns pelo trabalho e muita força força amiga.
    Melhores cumprimentos de Moçambique

  2. E olha onde estamos! Força e determinação! Belas palavras…coerência mil, que orgulho ter feito parte de um pouco da sua história enquanto professora aqui da nossa pequena região. Você é inspiração “tia Renata”, em belos atos passivos de leitura você entregou tudo! Parabéns!

  3. Os seus ensinamentos contribuem para que eu me torne um profissional melhor. Como diz Sierra Bailey” escrever não é usar palavras difíceis para impressionar. É usar palavras simples de uma forma impressionante. Isso você sabe muito bem nos presentear com suas belas palavras. E a sua biblioteca de experiência é fantástica. Parabéns pelo ótimo trabalho. Professora tenho em meus contatos salvos, como extraordinária- prof Ré .💯😍😍

  4. Muito coerente. Pessoa destemida e determinada. Muito inteligente. Que tudo isso passe o mais rápido possível. E que saíamos mais fortalecidos dessa triste situação. Forte abraço companheira e Deus abençoe você e seu filhinho. 🤝😘

  5. Que texto maravilhoso!
    Vindo de você eu não esperaria menos hahah. Essa escrita, a reflexão, as entrelinhas mostram muito de você, uma mulher guerreira!
    Espero que tudo se normalize logo!
    Sigamos juntos!

  6. Que texto Lindo companheira, isso nos faz pensar e refletir temos que cuidar de nossos pensamentos, e nos avaliar

    1. Parabéns por sua dedicação e profissionalismo, características essas que muito admiráveis!. Em seu belíssimo trabalho você não enxerga problemas, você encontra soluções. Você nos inspira por não ter medo de desafios e pó dar o seu melhor a cada trabalho feito com capricho e dedicação. Você sempre nos ensina e nos inspira. Obrigada por compartilhar sua experiência conosco ! Seu otimismo me contagia e faz com quê viaje em uma deliciosa leitura . Fico feliz cada exposição de seus trabalhos, mostra além de argumentos, histórias muitas dessas, de vivência. A sua carreira é exemplar .você cresceu pelo seu esforço e dedicação. Parabéns pelo seu mais admirável trabalho. Seu trabalho me contagia, pois sei que é um trabalho dedicado, determinado e excelente. Porque você sempre dá o seu melhor para vencê-los.

  7. Escrita de uma pessoa de verdade, intensa e de sentimentos igualitários…de quem nunca baixou a cabeça para os dias difíceis, e que diante de tanta incerteza, tem esperança e fé em dias de esperança. Porque somos mulheres, mães e amigas.
    Saudades! Força! Se cuida…nos cuidemos e cuidemos do próximo.

  8. Que descrição impecável ! pode ter certeza estamos juntas para o enfrentamento desta pandemia com a esperança de que tudo voltará logo logo, creio ! Força e coragem Rennatinha

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